Obrigação Orçamentária por 30 anos

OBRIGAÇÃO

A obrigação trazida pela publicação do edital para a PPP do Centro Administrativo Campos Elíseos, em junho de 2025, marca um compromisso financeiro que se estenderá por três décadas. Com valor estimado em R$ 5,4 bilhões e contrapartida anual máxima de R$ 824 milhões, o governo estadual cria uma rubrica fixa no orçamento que não se vincula diretamente a um serviço específico, como transporte público, rodovias ou ferrovias, mas sim à construção e operação de um complexo administrativo. Essa desvinculação obriga o Estado a manter, em cada Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), a reserva desses recursos antes mesmo de negociar prioridades setoriais. Em outras palavras, a despesa torna‑se um item autônomo, com dotação própria, alheia àquelas categorias clássicas de gasto vinculadas à prestação de serviços públicos essenciais.

Este modelo difere de concessões tradicionais, nos quais o fluxo de receitas e despesas está diretamente associado à qualidade e ao volume do serviço prestado — caso, por exemplo, de tarifas de transporte ou pedágios. No projeto dos Campos Elíseos, a fonte dos pagamentos é exclusivamente de obrigação orçamentária, gerando riscos de rigidez fiscal. Para cada exercício financeiro, o governador encontrará um “orçamento de gastos” pré‑definido, sem possibilidade de realocação em resposta a novas demandas ou crises imprevistas. A vinculação compulsória de recursos de longo prazo conflita com o princípio da anualidade, basilar no regime orçamentário brasileiro, que pressupõe a revisão anual das prioridades públicas.

A Lei Complementar n.º 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal) impõe a compatibilização de despesas continuadas com as projeções de receita dos dois exercícios seguintes, mas não prevê mecanismo idêntico para compromissos que se estendam por 30 anos. Assim, a PPP dos Campos Elíseos escapa do biênio de monitoramento previsto, submetendo o Estado a obrigações potencialmente superiores à sua capacidade de adaptação fiscal. Ainda que a LDO estadual (artigo 36) exija a programação de despesas de longo prazo, a prática pode se configurar como uma “âncora” permanente, incapaz de ser aliviada em cenários adversos. O regime imposto pela PPP impossibilita mudanças, especialmente na redução de despesas. Ou seja, mesmo em um cenário de redução de quadro do funcionalismo, haverá de se manter esses espaços físicos criados pela PPP, mesmo que totalmente ociosos.

Na esfera constitucional, o artigo 165 da Constituição Federal exige que Plano Plurianual (PPA), LDO e Lei Orçamentária Anual (LOA) se harmonizam, permitindo previsibilidade sem tolher a flexibilidade. Não obstante, a PPP impõe um ponto de partida orçamentário inalterável, que assimila a estrutura de financiamento de infraestrutura — normalmente associada a projetos de mobilidade urbana e rodovias — a um gasto administrativo. Essa escolha de designar dotação própria e inflexível revela a prioridade do governo pela centralização e modernização, mas sobrecarrega futuras gestões com uma margem de manobra estreita para lidar com imprevistos fiscais ou reorientar investimentos.

Limitações à Eficiência, Economicidade e Eficácia

Ao criar uma despesa não vinculada a serviço público de consumo direto, o modelo de PPP para o Centro Administrativo Campos Elíseos desafia as diretrizes constitucionais de economicidade, eficiência e eficácia, previstas no artigo 37, caput, da Constituição Federal. Esses princípios orientam a administração pública a empregar com moderação os recursos disponíveis, a buscar a melhor relação entre custo e benefício e a alcançar os resultados pretendidos. No entanto, ao estabelecer um orçamento fixo e hereditário, o Estado perde a capacidade de aplicar esses critérios de maneira contínua, pois a despesa já está engessada antes mesmo de demonstrar ganhos financeiros concretos.

Em estudos preliminares, o governo alega economias que se dariam pela concentração de 22,7 mil servidores em um só local, resultando em redução de aluguéis, manutenção e operação de dezenas de edifícios dispersos. Essas justificativas carecem de detalhamento quantitativo público — como VPL ou TIR — que confirme a vantagem econômica real. A falta de transparência e a própria ausência desses indicadores nos documentos oficiais gera um paradoxo: ainda que se apoie na expectativa de eficiência, a administração renuncia ao acompanhamento perene de custos e resultados ao fechar um compromisso orçamentário inflexível e altamente oneroso.

A eficácia do projeto também é questionável. Se a PPP não amarra sua execução ao desempenho de indicadores operacionais e financeiros, não há gatilhos automáticos de correção de rota em caso de desperdício ou atraso. Em concessões de infraestrutura, cláusulas de penalidade e reajuste vinculam a prestação do serviço à remuneração da concessionária. No Centro Administrativo, o pagamento anual independe de metas de desempenho, pois se trata de um contrato de gestão de ativos prediais — modelo em que o cliente público paga independentemente da produtividade efetiva. Esse desenho dificulta acionar mecanismos institucionais que garantam o retorno sobre o investimento e a adaptação a novas tecnologias ou mudanças administrativas.

Em relação à busca por economicidade, o Estado se compromete a liberar imóveis antigos, mas não há cronograma claro para a alienação desses ativos ou para a reinversão dos recursos obtidos. Caso a desocupação e a venda de prédios não ocorra conforme o projetado, o suposto benefício orçamentário antecipado se dilui, deixando o Tesouro responsável por financiar integralmente a PPP sem uma parte da contrapartida real. A liquidez dos ativos públicos também não está garantida, o que pode gerar desequilíbrio nas contas estaduais e reduzir ainda mais a margem de manobra para despesas essenciais, como saúde e educação.

O Legado para os Governadores Futuros

Governadores que assumirem o cargo nos próximos 30 anos herdarão uma obrigação orçamentária inescapável. Ainda que a Lei de Responsabilidade Fiscal preveja gatilhos de contingenciamento, como limites de empenho para despesas obrigatórias, essas medidas não se aplicam facilmente a contratos firmados sob PPP. A renúncia de receita ou o atraso nos pagamentos constituem inadimplemento contratual, com multas e risco de intervenção judicial. Nesse cenário, a autonomia gerencial do chefe do Executivo estadual fica cerceada — ele não poderá redirecionar recursos para novas prioridades ou emergências sem negociação prévia com a concessionária.

O risco político também é elevado. A dependência de recursos vincula a capacidade de inaugurar obras, manter programas sociais e reagir a crises meteorológicas ou sanitárias. Em períodos de recessão econômica, em que a arrecadação cai, o governo deverá escolher entre honrar compromissos contratuais caros ou cortar investimentos críticos em outras áreas. A rigidez orçamentária provocada pela PPP pressupõe que o Estado tolerará sacrifícios permanentes, mas não produz salvaguardas para cenários extremos, deixando o espaço de manobra comprometido.

Para reverter parte dessa rigidez, poderia ser prevista cláusula de renegociação periódica, indexação a indicadores de serviço ou vinculação parcial do pagamento à eficiência operacional do complexo, mas tais mecanismos não constam no edital. Pelo contrário, a minuta contratual prevê punições contratuais ao Estado em eventual atrasos de pagamentos que em nada diferem de um contrato de locação tradicional.

Implicações Constitucionais e Jurídicas

Sob a ótica do direito público, admite‑se que contratos de longo prazo sejam firmados para grandes investimentos, desde que acompanhados de estudos técnicos preliminares e de viabilidade, conforme artigo 156, § 1º, da Lei n.º 14.133/2021. Ademais, a Constituição Federal estabelece o princípio da separação temporal do orçamento, impedindo que decisões de um exercício financeiro vinculem o futuro de forma automática e incontornável. A inserção de despesa continuada na LDO com dotação própria e gravame fixo por 30 anos fere o princípio da anualidade (CF, art. 165) e extrapola o alcance do Plano Plurianual.

Além disso, o artigo 16 da Lei de Responsabilidade Fiscal veda a criação de despesa continuada sem a correspondente estimativa de receitas para o período de duração do contrato. A modelagem da PPP carece de transparência quanto à fonte de custeio que garantirá a cobertura dos R$ 5,4 bilhões, o que poderia motivar ação judicial pelo Ministério Público ou pelo Tribunal de Contas do Estado. O acompanhamento dos impactos fiscais deve contemplar não somente o biênio previsto, mas toda a vigência contratual, de modo a assegurar o equilíbrio e evitar contingências ocultas.

Por fim, esbarra-se no princípio da eficiência e no dever de motivação das despesas públicas. Decisões que impactem o orçamento em caráter perpétuo devem ser justificadas à luz de estudos robustos, detalhando custos, benefícios e riscos. A ausência de dados quantitativos públicos — indicadores de VPL, TIR ou payback — fragiliza a defesa jurídica do edital da PPP, abrindo espaço para questionamentos quanto à regularidade do processo licitatório e à licitude de reservar dotação orçamentária de forma irrestrita.

Em síntese, a obrigação trazida pela PPP do Centro Administrativo Campos Elíseos inaugura um modelo de despesa desvinculada de serviço público propriamente dito, com orçamento próprio e inflexível, capaz de comprometer seriamente a flexibilidade fiscal do Estado de São Paulo pelos próximos 30 anos. As diretrizes constitucionais de economicidade, eficiência e eficácia vivem um paradoxo: estão reconhecidas como fundamentos da administração, mas não se materializam em cláusulas contratuais que restrinjam ou ajustem o desembolso anual. O resultado é um “orçamento de gastos” pronto, que desafia governadores futuros a equilibrar investimentos sociais e obrigações contratuais elevadas, sob o risco de embates judiciais e intervenções de controle externo.

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