Reestatização avança pelo mundo. Brasil segue na contramão com privatizações

Foto: Ronaldo Silva/Agência Estado
Reestatização de serviços públicos ganha força em países desenvolvidos desde o final de 2024, com governos retomando o controle de setores estratégicos após experiências malsucedidas com a iniciativa privada. Enquanto isso, o Brasil caminha na direção oposta, intensificando seu programa de privatizações em áreas como saneamento, transporte ferroviário e infraestrutura. A disparidade entre as tendências globais e o movimento brasileiro levanta questionamentos sobre a eficácia e sustentabilidade dessas escolhas políticas.
Reino Unido lidera onda de reestatização no setor ferroviário
O governo trabalhista britânico iniciou em maio de 2025 um ambicioso processo de reestatização do sistema ferroviário, começando pela South Western Railway. A companhia, que opera no sudoeste da Inglaterra, foi a primeira a retornar ao controle público como parte de uma campanha que prevê a renacionalização de todas as operadoras ferroviárias britânicas até o final de 2027.
“A South Western Railway agora pertence ao setor público. E isso é apenas o começo”, declarou o primeiro-ministro Keir Starmer na rede social X, prometendo “um serviço melhor, uma venda de passagens mais simples e trens mais confortáveis”.
A privatização do setor ferroviário britânico ocorreu em meados da década de 1990, durante o governo do primeiro-ministro conservador John Major, seguindo a política liberal de Margaret Thatcher. Apesar das promessas de melhorias, o projeto enfrentou forte resistência popular desde o início. Cancelamentos, atrasos e preços elevados geraram descontentamento entre os passageiros, com dados oficiais demonstrando que 4% das viagens de trens foram canceladas em 2025.
O governo trabalhista afirma que a reestatização economizará até 150 milhões de libras (R$ 1,1 bilhão) por ano em compensações pagas às operadoras privadas. A espera pelo término dos contratos permite, segundo o governo, evitar o pagamento de indenizações às atuais empresas.
Saneamento básico: Paris e Berlim lideram retorno ao controle público
No setor de saneamento, a reestatização também ganha força, especialmente na Europa. Paris, que viveu 26 anos sob privatização, concluiu em 2010 um processo de municipalização que durou sete anos. O serviço de água da capital francesa foi privatizado em 1984, quando duas empresas, Veolia e Suez, dividiram a cidade entre si.
Problemas como falta de transparência financeira, contratos rígidos e aumento de tarifas duas vezes maior que a inflação, levaram à criação da empresa pública Eau de Paris em 2003, que assumiu completamente o serviço em 2010. Após a retomada pelo município, os preços caíram 8%, e a empresa adotou medidas sociais, como a instalação de mais de 1.200 fontes de água pela cidade.
Em Berlim, a reestatização seguiu caminho semelhante. Em 1999, a estatal de águas vendeu 49,9% de suas ações a duas empresas privadas. Contudo, em 2004, os preços da água aumentaram cerca de 35%, gerando descontentamento popular que culminou em um referendo e processo judicial. Em 2012, Berlim obrigou as companhias a reduzirem em 18% as tarifas, consideradas abusivas, e recomprou as ações das empresas privadas em 2012 e 2013.
A tendência de municipalização do saneamento é global. De 2000 a 2015, houve 235 municipalizações atendendo mais de 100 milhões de pessoas. Em 2020, esse número subiu para 311 casos, e até 2024, já eram 364. A França lidera com 114 cidades, incluindo Lyon e Bordeaux, que retomaram o controle de suas empresas de saneamento em 2023.
México avança com reestatização no setor energético
No setor energético, o México se destaca com um processo de reestatização iniciado em 2021, durante o governo de Andrés Manuel López Obrador, e continuado por Claudia Sheinbaum. Em fevereiro de 2025, o Senado mexicano aprovou 11 mudanças em leis que compõem um pacote de reforma energética para fortalecer o papel do Estado no setor.
A medida consolida a reestatização da Petróleos Mexicanos (Pemex) e da Comissão Federal de Eletricidade (CFE), revertendo a privatização promovida por governos anteriores. A nova legislação especifica que a Pemex deve ter participação mínima de 40% em projetos de exploração e produção com o setor privado, enquanto a rede da CFE deve produzir pelo menos 54% da eletricidade gerada no país.
“Hoje termina 30 anos de saque e neoliberalismo”, afirmavam cartazes segurados por senadores do partido governista Morena durante a votação, que teve 85 votos favoráveis, 36 contrários e uma abstenção.
Motivos comuns para a reestatização global
A análise dos casos internacionais revela padrões recorrentes que motivam a reestatização. Problemas econômicos, como aumento abusivo de tarifas, falhas na modelagem contratual e promessas não cumpridas de eficiência, aparecem em praticamente todos os exemplos estudados.
A má qualidade dos serviços também é fator determinante, com cancelamentos, atrasos e falta de investimentos gerando insatisfação entre os usuários. Falhas regulatórias, como atuação fraca dos órgãos de controle e falta de transparência das empresas privadas, contribuem para o fracasso das privatizações.
Questões sociais e trabalhistas, como redução de empregos e pressão popular, completam o quadro que tem levado governos a reverterem privatizações. No setor energético, o controle estratégico de recursos essenciais também pesa na decisão de reestatizar.
Segundo dados do Transnational Institute (TNI), já foram catalogados 1.718 casos de reestatização no mundo, com o setor de energia liderando (22,8% do total), seguido pelo saneamento básico.
Brasil na contramão: privatizações avançam em setores estratégicos
Enquanto o movimento global caminha para a reestatização, o Brasil intensifica seu programa de privatizações e concessões, focando justamente nos setores que lideram o movimento contrário no mundo: saneamento, transporte e energia.
A privatização da Sabesp, concluída em julho de 2024, movimentou R$ 14,8 bilhões, sendo considerada a maior oferta de saneamento da história e a terceira maior oferta pública do mundo em 2024. Com o processo, o governo de São Paulo reduziu sua participação na companhia de 50,3% para 18,3%, enquanto a Equatorial assumiu 15% das ações como investidora de referência.
O governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) prometeu destinar R$ 10,3 bilhões (70% dos recursos) para investimentos em infraestrutura e R$ 4,4 bilhões para um fundo de apoio à universalização do saneamento. O plano prevê R$ 260 bilhões em investimentos até 2060, com R$ 69 bilhões destinados à universalização do saneamento básico em São Paulo até 2029.
No setor de transporte, o Trem Intercidades, que ligará São Paulo a Campinas, avança como uma Parceria Público-Privada (PPP). O contrato foi assinado em maio de 2024 com o consórcio C2 Mobilidade sobre Trilhos, formado pela empresa chinesa CRRC Hong Kong (40%) e pelo grupo brasileiro Comporte (60%). O projeto prevê um trajeto de 101 km percorrido em 64 minutos, com velocidade de até 140 km/h e capacidade para 860 passageiros por viagem.
As obras devem começar em maio de 2026, com previsão de operação para maio de 2031. Entre os desafios identificados estão desapropriações, readequação do transporte de cargas e preservação de estações históricas tombadas.
Outro projeto emblemático é o Túnel Santos-Guarujá, primeiro túnel submerso da América Latina, com leilão agendado para 5 de setembro de 2025. Com valor estimado em R$ 6 bilhões, o projeto prevê uma estrutura de 1,5 km de extensão (sendo 870 metros imersos), com três faixas de rolamento por sentido, incluindo uma exclusiva para o Veículo Leve sobre Trilhos (VLT).
Incluído no Novo PAC (Programa de Aceleração do Crescimento do Governo Federal), o túnel é considerado a maior obra do programa e deve gerar 9 mil empregos diretos e indiretos. O governo de São Paulo realizou um roadshow na Europa para atrair investidores, e o leilão foi adiado para incorporar contribuições de empresas interessadas.
Riscos e contradições do modelo brasileiro
A análise comparativa entre o movimento global de reestatização e o avanço das privatizações no Brasil revela potenciais riscos e contradições. As experiências internacionais demonstram que problemas como aumento de tarifas, falhas regulatórias e foco no retorno financeiro em detrimento da qualidade do serviço podem levar ao fracasso das privatizações.
No caso brasileiro, chama atenção a manutenção de participação minoritária do Estado em empresas privatizadas, como a Sabesp, e o forte subsídio estatal, mesmo em projetos concedidos à iniciativa privada. Também preocupa a baixa competitividade em alguns leilões, como o da Sabesp, que teve somente um interessado para o posto de investidor de referência. A baixa competitividade tem sido uma tendência geral, aponta estudo.
Enquanto governos ao redor do mundo reconhecem as limitações do modelo privado para serviços essenciais, o Brasil aposta na direção oposta, justificando suas escolhas com a necessidade de investimentos para universalização de serviços, limitações fiscais do Estado e promessas de maior eficiência e qualidade.
O tempo dirá se o Brasil está acertando em sua aposta ou se, como ocorreu em diversos países, terá que reconsiderar suas escolhas e seguir o movimento global de reestatização de serviços públicos essenciais.