Preço do m³ de gás encanado varia 160,7% entre estados

preço do m³ de gás encanado

O preço do m³ de gás encanado no Brasil tem sido alvo de crescentes debates devido às enormes variações de preço entre os estados. Isso promove questionamentos sobre a justiça e legalidade dessas diferenças. Enquanto a autonomia dos estados na definição de tarifas é garantida, a disparidade dos preços pode atingir até 160%, gerando preocupação entre especialistas e consumidores. Os centros econômicos maiores e com maior demanda por gás possuem os preços mais altos, pressionando tanto a população quanto setores produtivos.

No Rio de Janeiro, por exemplo, o preço do m³ de gás encanado pode chegar a R$ 11,66. Na maior parte dos estados o valor não ultrapassa R$ 8,00. Essa diferença gritante não se justifica apenas pela oferta e demanda local, mas por uma série de fatores. Entre as possíveis razões vemos a gestão estatal, os contratos com as concessionárias e o custo da infraestrutura para entrega do gás ao consumidor final. Contudo, as variações atingem níveis tão discrepantes, superando o contexto de mercado e resultando em diferenças percentuais acima de 100%. Isso torna inevitável questionar se o princípio da igualdade previsto na Constituição Federal está sendo violado.

Inconstitucionalidade

O artigo 150 da Constituição Brasileira prevê que a União, os estados e os municípios não podem estabelecer diferenças tributárias entre contribuintes em razão de sua procedência ou destino. Embora esse dispositivo constitucional seja voltado especialmente para questões tributárias, ele abre espaço para a reflexão sobre a constitucionalidade de práticas que gerem desigualdades tão significativas entre os consumidores, especialmente em relação a um insumo tão essencial quanto o gás.

A autonomia dos estados não pode sobrepor-se aos direitos fundamentais dos consumidores, que, na prática, são prejudicados por essa disparidade de preços.

A discrepância de preços gera uma série de impactos negativos, especialmente para as indústrias e o comércio, que são grandes consumidores de gás. No Rio de Janeiro, por exemplo, empresas enfrentam custos operacionais significativamente maiores do que aquelas em estados onde o preço do gás é mais baixo. Isso compromete a competitividade entre as regiões, encarecendo produtos e serviços e desestimulando investimentos em áreas onde o custo energético é elevado. A variação também afeta os consumidores residenciais, que em algumas regiões veem suas contas de gás impactando diretamente o orçamento familiar. Para muitos, o aumento do preço do gás pode se tornar um fardo financeiro, especialmente em tempos de alta inflação e recessão econômica.

Comparativo de preço do m³ de gás encanado

Esse assunto é tão relevante que a gerência de Petróleo, Gás e Naval da Firjan SENAI SESI desenvolveu uma calculadora comparativa. O download da ferramenta é gratuito e pode ser feito aqui.

Como resultado, a calculadora gera comparativos das tarifas do m³ de gás encanado em diferentes estados e regiões. Esses valores estão representados no gráfico a seguir.

No gráfico, entre os cinco valores mais altos, dois pertencem ao estado do Rio de Janeiro e outros dois ao estado de São Paulo. O estado de São Paulo apresenta ainda o sexto valor mais elevado. Nesse estado, as tarifas variam de R$ 7,78 a R$ 10,33, resultando em uma diferença percentual de aproximadamente 32,5%.

Contudo, a maior variação ocorre entre o Rio de Janeiro, com R$ 11,68, e o Ceará, com R$ 4,48, resultando em uma diferença de 160,7%.

Discrepâncias sem justificativa

Outro ponto que merece destaque é a regulação do setor. A Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), responsável pela fiscalização do mercado de gás, tem a missão de garantir a segurança no abastecimento e a competitividade no setor. No entanto, a regulação tarifária é de competência estadual, abrindo espaço para cada estado estabelecer suas próprias regras de cálculo e tarifas, sem uma padronização nacional que limite essas disparidades. Com a descentralização das políticas de gás, surge um vácuo regulatório, que acaba por permitir essas diferenças regionais sem uma supervisão mais rigorosa ou a intervenção do governo federal.

Essa falta de uniformidade tarifária, embora legal segundo a Constituição, pode ser considerada um problema de justiça social. O consumidor brasileiro, independentemente de onde mora, deveria ter acesso a um serviço essencial como o gás a um preço justo e acessível. A descentralização da regulação tarifária visa atender às especificidades de cada estado. No entanto, na prática, parece ter gerado um cenário de desigualdade no acesso a serviços básicos. Essa situação poderia ser questionada judicialmente com base no princípio da isonomia. A desigualdade de preços não se justifica apenas pelas condições locais de mercado.

Impactos na sustentabilidade

Em um país com uma distribuição de renda já desigual como o Brasil, a variação no preço do gás acaba ampliando ainda mais as disparidades regionais. Regiões mais ricas e industrializadas, como o Sudeste, deveriam, em teoria, ter preços menores devido ao maior volume de consumo e à proximidade com os principais centros de produção de gás. No entanto, a realidade é justamente o oposto. Estados como Rio de Janeiro e São Paulo, que são grandes consumidores e têm maior proximidade com a cadeia produtiva do gás, enfrentam preços maiores, enquanto regiões menos desenvolvidas, como o Nordeste, apresentam preços mais baixos em determinados estados. Esse paradoxo é mais uma evidência de que algo não está funcionando adequadamente na regulação do setor.

O impacto dessas variações também se reflete em outro aspecto importante: a transição energética. Com o mundo em busca de fontes de energia mais sustentáveis, o gás natural se destaca como uma alternativa. Essa energia pode ser menos poluente em comparação ao petróleo e ao carvão. Pode se sobressair até mesmo à energia elétrica, especialmente em contextos de racionamento durante períodos de estiagem hídrica. Contudo, se o preço do gás continuar elevado em certas regiões, o incentivo para a transição energética fica prejudicado. Tanto consumidores quanto empresas podem optar por fontes de energia mais baratas, mesmo que sejam mais poluentes.

O Brasil possui uma das maiores reservas de gás natural do mundo. Isso deveria colocar o país em uma posição vantajosa para estimular o uso desse recurso de forma competitiva. Mas as variações tarifárias regionais acabam desestimulando seu uso em larga escala.

Reajuste acima da inflação

Outro detalhe ao analisar os dados de São Paulo é o reajuste aplicado nos últimos nove anos. Entre 2015 e 2024, o reajuste praticado pela Comgás no segmento residencial de medição coletiva (Classe 1, até 500 m³ por mês) acumulou uma alta de 123%. Em comparação, se o valor original de 2015 tivesse sido reajustado apenas pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), o aumento seria de 72% no mesmo período. Essa diferença significativa implica em um impacto direto nas contas dos consumidores.

Só em maio/2019, o reajuste foi em torno de 32%

Para uma residência que consome 1 m³ de gás por dia, o custo anual aumentou em cerca de R$ 815,00. Atualmente, a conta com esse consumo mensal gira em torno de R$ 300,00, evidenciando um peso considerável no orçamento das famílias paulistanas. Essa disparidade entre o reajuste aplicado pela concessionária e a inflação oficial levanta questionamentos sobre a política tarifária. Essa questão coloca o consumidor ainda mais em desvantagem diante de aumentos acima da média.

Ação urgente

Está em jogo o equilíbrio entre a autonomia dos estados na gestão tarifária e o direito dos consumidores a serviços de qualidade e preços justos. Embora fatores econômicos e regionais expliquem a diversidade de preços, a discrepância atual ultrapassa o limite do aceitável. É urgente que o governo federal, em parceria com os estados, revise as políticas de regulação do preço do m³ de gás encanado. É fundamental encontrar uma solução que promova maior equidade entre os consumidores e proteja os interesses da população. Essa medida busca equilibrar a autonomia regional com a necessidade de garantir o respeito à Constituição e aos direitos dos consumidores.

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