Mobilidade urbana a pé: Desafio das calçadas no Brasil

Ladeira Porto Geral, SP (Canva)
A mobilidade urbana é um direito fundamental, mas a realidade das calçadas em muitas das grandes cidades brasileiras e ao redor do mundo transforma o simples ato de caminhar em um desafio diário. Buracos, obstáculos, falta de acessibilidade e negligência histórica relegam a mobilidade a pé a um segundo plano, apesar de ser a forma de deslocamento mais básica e, muitas vezes, a única opção para milhões de pessoas. Este cenário impacta diretamente a qualidade de vida, a segurança e a inclusão social, exigindo um olhar atento e ações urgentes por parte do poder público e da sociedade.
Neste artigo:
O “patinho feio” da mobilidade urbana no Brasil: Calçadas esquecidas
A mobilidade urbana a pé, apesar de essencial, enfrenta um cenário desolador no Brasil, sendo frequentemente tratada como o “patinho feio” do planejamento urbano. Uma recente Pesquisa Nacional de Mobilidade Urbana (Pemob) de 2024, realizada pelo Ministério das Cidades, expôs uma realidade preocupante: das 72 grandes cidades brasileiras consultadas (com mais de 250 mil habitantes), somente 23 forneceram dados sobre a extensão de suas calçadas. A ausência de informações de capitais importantes como Rio de Janeiro, Brasília, Recife e Porto Alegre, além de metrópoles como Campinas e Florianópolis, revela uma negligência sistêmica com a infraestrutura mais básica para quem caminha.
A falta de monitoramento e dados confiáveis sobre as calçadas impede a formulação de políticas públicas eficazes para a mobilidade a pé. Mesmo cidades que possuem planos diretores e de mobilidade atualizados falham em mapear adequadamente essa infraestrutura.
Os poucos dados disponíveis, por vezes, carecem de credibilidade, como os 30.000 km informados por São Paulo, número questionado por especialistas, ou os irrisórios 4 km registrados por Mauá (SP), incompatíveis com sua população e área. Essa invisibilidade estatística reflete a baixa prioridade dada ao pedestre no planejamento da mobilidade urbana nacional. Buracos, degraus, falta de rampas, obstáculos e a simples inexistência de calçadas adequadas são a norma, transformando o ato de caminhar em um percurso arriscado e excludente, especialmente para idosos, crianças e pessoas com deficiência.
Além das fronteiras: Soluções globais para a mobilidade a pé
O desafio da mobilidade urbana a pé não é exclusivo do Brasil. Cidades ao redor do mundo enfrentam problemas similares, com ruas projetadas historicamente para priorizar o tráfego de veículos em detrimento da segurança e acessibilidade dos pedestres. No entanto, exemplos internacionais demonstram ser possível reverter esse quadro com planejamento e investimento focados em quem caminha. O México, por exemplo, tornou-se a primeira nação a declarar o acesso à mobilidade segura como um direito humano em 2020, impulsionando a reformulação de suas leis e ruas para proteger pedestres e ciclistas.
Iniciativas como as implementadas no estado de Jalisco, no México, demonstram o potencial de transformações relativamente simples. A ampliação de calçadas, criação de faixas de pedestres seguras, instalação de iluminação adequada, plantio de árvores e a implementação de zonas de tráfego acalmado, especialmente perto de escolas e hospitais, são intervenções eficazes.
O conceito de “Ruas Completas” (Complete Streets), que advoga por um design urbano que acomode todos os usuários – pedestres, ciclistas, usuários de transporte público e motoristas – oferece um guia valioso. Calçadas largas (mínimo de 1,8 m), niveladas, sem obstruções e com uma zona de segurança (buffer) de 0,8 m para mobiliário urbano ou vegetação são cruciais para garantir uma mobilidade urbana a pé segura e confortável. A integração com infraestrutura verde e ciclovias seguras complementa essa visão, criando cidades mais humanas, sustentáveis e acessíveis para todos.
Impacto além do asfalto: Por que investir na mobilidade a pé é urgente
A negligência com as calçadas e a mobilidade urbana a pé gera consequências profundas que vão muito além do desconforto. Para os grupos mais vulneráveis da população – idosos, crianças, pessoas com deficiência ou mobilidade reduzida – calçadas inadequadas representam barreiras intransponíveis, limitando seu acesso a serviços essenciais, oportunidades de trabalho, lazer e convívio social. A falta de acessibilidade nas calçadas é um fator de exclusão social, confinando muitos cidadãos em suas casas e negando seu direito à cidade. Além disso, a precariedade da infraestrutura para pedestres aumenta significativamente o risco de acidentes e atropelamentos, ceifando vidas e sobrecarregando os sistemas de saúde.
Investir na mobilidade urbana a pé não é somente uma questão de justiça social, mas também de sustentabilidade e saúde pública. Cidades caminháveis incentivam um estilo de vida mais ativo, combatendo o sedentarismo e doenças associadas. Promover a caminhada como modo de transporte contribui para a redução da dependência de veículos motorizados, diminuindo a emissão de poluentes, o congestionamento e o ruído urbano. Calçadas bem projetadas, arborizadas e seguras transformam o espaço público, tornando as cidades mais agradáveis, resilientes às mudanças climáticas e economicamente vibrantes, ao estimular o comércio local e a interação comunitária. Priorizar o pedestre é, portanto, investir no bem-estar coletivo e na construção de um futuro urbano mais humano e sustentável.
Lixo nas calçadas: Um obstáculo adicional à mobilidade urbana
Além dos desafios estruturais das calçadas, um problema cotidiano agrava a situação da mobilidade urbana a pé em muitas cidades brasileiras: o acúmulo de lixo. Sacos de lixo depositados diretamente nas calçadas ou em suportes inadequados obstruem a passagem, forçando pedestres a desviar pela rua, além de representarem um sério risco à saúde pública. Essa prática comum atrai vetores de doenças, como insetos e roedores, contribui para o entupimento de bueiros – intensificando alagamentos – e torna o ambiente urbano insalubre e desagradável.
A gestão inadequada dos resíduos sólidos impacta diretamente a segurança e a acessibilidade, penalizando especialmente os mais vulneráveis. Idosos, crianças e pessoas com deficiência encontram barreiras adicionais em seu direito de ir e vir. Diante desse cenário, surgem iniciativas inovadoras que buscam integrar a gestão de resíduos à pauta da mobilidade urbana. O projeto Mobilidade a Pé: Inovação na Gestão do Lixo, desenvolvido pela Anuva Institute, é um exemplo. A proposta visa revolucionar a coleta de lixo urbano implementando soluções sustentáveis que não só otimizam o processo, mas promovem calçadas mais limpas e seguras, utilizando sistemas inteligentes e campanhas de conscientização para transformar a relação da cidade com seus resíduos e, consequentemente, melhorar a experiência de quem caminha.
Passos urgentes para uma mobilidade urbana inclusiva
A realidade das calçadas no Brasil, e em muitas partes do mundo, evidencia uma falha crítica no planejamento da mobilidade urbana. Tratar a caminhada como prioridade não é somente uma questão de infraestrutura, mas um imperativo social, ambiental e de saúde pública. Exemplos internacionais, como o do México e as diretrizes das “Ruas Completas”, demonstram que a mudança é possível e necessária. É fundamental que as cidades brasileiras passem a coletar dados sistemáticos sobre suas calçadas, invistam na sua adequação e manutenção, e integrem a mobilidade a pé de forma transversal em suas políticas urbanas.
Reconhecer a mobilidade urbana a pé como um direito e investir na qualidade das calçadas é dar um passo decisivo rumo a cidades mais justas, seguras, saudáveis e sustentáveis para todos os cidadãos. A transformação começa com a conscientização e a cobrança por espaços públicos que verdadeiramente acolham quem caminha, garantindo que o simples ato de andar não seja um privilégio, mas uma experiência segura e prazerosa para todos.