Gripe aviária abre dilema entre exportação e consumo interno

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A gripe aviária detectada recentemente em uma granja comercial no Rio Grande do Sul desencadeou uma onda de embargos internacionais que afeta diretamente o maior exportador de frango do mundo. Com mais de 35 países suspendendo a importação de produtos avícolas brasileiros, incluindo China, União Europeia e Rússia, o mercado interno se prepara para absorver um excedente significativo de carne de frango e ovos. Este cenário levanta questões importantes sobre o equilíbrio entre exportações agrícolas e abastecimento doméstico, não somente no Brasil, mas também em outras potências agrícolas globais.
Embargos à exportação e o impacto nos preços internos
A gripe aviária, confirmada pela primeira vez em uma granja comercial brasileira em Montenegro (RS), provocou reações imediatas no mercado internacional. Segundo o Ministério da Agricultura, 35 países suspenderam total ou parcialmente a importação de produtos avícolas brasileiros, incluindo grandes compradores como China, União Europeia, Argentina, Chile e México. Alguns bloqueios afetam a produção de todo o país, enquanto outros são mais localizados, como o caso do Japão, que restringiu apenas produtos da região afetada.
O Brasil, como maior exportador mundial de carne de frango, com 35,4% da produção destinada ao mercado externo e embarques de 5,3 milhões de toneladas em 2024, agora enfrenta um excedente de oferta no mercado interno. Especialistas como Adenauer Rockenmeyer, delegado do Conselho Regional de Economia de São Paulo, preveem uma redução nos preços domésticos no curto prazo. “Com a presença maior de ovos no Brasil, o produto tende a aparecer nas prateleiras mais barato em breve”, afirma.
Este cenário ilustra como as exportações sem limites podem afetar a dinâmica de preços internos. Quando o país prioriza o mercado externo, os preços domésticos tendem a subir devido à menor disponibilidade. Em contrapartida, quando ocorrem embargos, o excedente não exportado pressiona os preços para baixo, beneficiando o consumidor brasileiro.
Dados do IBGE mostram que o preço do ovo de galinha aumentou 9,62% em 2025, quase quatro vezes a inflação geral de 2,46% no mesmo período. No acumulado dos últimos 12 meses, o aumento foi de 12,32%, enquanto o índice geral avançou 5,53%. A expectativa é que essa tendência se reverta com o aumento da oferta interna.
China, Rússia e EUA: diferentes abordagens para o mesmo dilema
A China, maior importadora de produtos agrícolas brasileiros, adota uma política clara de priorização da segurança alimentar interna. Segundo reportagens recentes, o governo chinês está implementando medidas para estimular o consumo interno e reduzir a dependência de importações. “Nosso foco é criar um sistema agrícola circular e orgânico, que seja sustentável e capaz de alimentar os 1,4 bilhão de chineses”, afirmou a deputada Wang Yinxiang durante as Duas Sessões, principal evento político anual do país.
A China tem investido em agricultura orgânica e sustentável, reconhecendo que “a poluição ambiental e o uso excessivo de fertilizantes e pesticidas químicos têm impactado a segurança alimentar”. Esta abordagem demonstra uma preocupação com o equilíbrio entre produção, consumo interno e sustentabilidade ambiental.
A Rússia, por sua vez, apresenta uma estratégia diferente. Segundo a Agrimídia, o país registrou um crescimento de 25% nas exportações de aves em 2024, atingindo 420 mil toneladas, impulsionado pela expansão das vendas para China e Arábia Saudita. Simultaneamente, estabeleceu um novo recorde de consumo interno de carne, com 83 kg por pessoa, sendo 36 kg de aves.
Sergey Lakhtyukhov, diretor geral da União Nacional Russa de Avicultores, destaca que “o fato de sermos exportadores líquidos é certamente positivo. Porque se não fosse isso, a carne permaneceria no mercado do nosso país. Isso colocaria pressão adicional nos indicadores econômicos de nossas empresas”. Esta declaração evidencia a preocupação com o equilíbrio entre exportação e mercado interno para manter a saúde econômica do setor.
Já os Estados Unidos adotam uma abordagem mais protecionista em momentos de crise. Durante a guerra comercial com a China, o governo americano implementou políticas para proteger seus produtores e garantir o abastecimento interno. Especialistas recomendam que “o governo pode implementar políticas que incentivem a reserva de parte da produção para o consumo interno, garantindo a estabilidade dos preços”.
O dilema brasileiro: exportar sem limites ou priorizar o mercado interno?
O caso da gripe aviária no Brasil expõe um dilema fundamental da política agrícola: como equilibrar a vocação exportadora com as necessidades do mercado interno e a sustentabilidade ambiental? O país, que exportou US$ 9,9 bilhões em carne de frango para 151 países em 2024, agora enfrenta uma situação em que parte dessa produção permanecerá no mercado doméstico.
Por um lado, as exportações agrícolas são essenciais para o superávit da balança comercial brasileira e para a saúde econômica do setor. Por outro, a priorização excessiva do mercado externo pode pressionar os preços internos, contribuindo para a inflação de alimentos e afetando a segurança alimentar da população.
Além disso, a produção agrícola intensiva voltada para exportação gera impactos ambientais significativos. O uso extensivo de terras, água e insumos químicos, além da emissão de gases de efeito estufa, compromete a sustentabilidade a longo prazo. A experiência chinesa de investimento em agricultura orgânica e circular oferece lições importantes para o Brasil.
A situação atual, paradoxalmente, pode beneficiar o consumidor brasileiro no curto prazo, com a redução dos preços de frango e ovos. No entanto, levanta questões sobre a necessidade de políticas que garantam um equilíbrio mais estável entre exportação e abastecimento interno, independentemente de crises sanitárias como a gripe aviária.
Lições da crise: por um modelo agrícola mais equilibrado
A crise da gripe aviária e seus desdobramentos econômicos oferecem uma oportunidade para repensar o modelo agrícola brasileiro. As experiências de China, Rússia e Estados Unidos mostram que diferentes abordagens são possíveis para equilibrar exportações, consumo interno e sustentabilidade.
A China prioriza a segurança alimentar e investe em práticas sustentáveis; a Rússia busca um equilíbrio que mantenha a saúde econômica do setor; e os Estados Unidos não hesitam em adotar medidas protecionistas quando necessário. O Brasil, como líder global em exportações agrícolas, precisa desenvolver sua própria estratégia equilibrada.
Um modelo que considere não apenas o valor das exportações, mas também a estabilidade dos preços internos e a sustentabilidade ambiental, seria mais resiliente a crises como a atual. Isso poderia incluir políticas de reserva estratégica, incentivos à produção sustentável e mecanismos de regulação que evitem tanto a escassez quanto o excesso no mercado interno.
A gripe aviária, apesar dos desafios que impõe ao setor, pode ser o catalisador para uma reflexão necessária sobre como o Brasil pode continuar sendo um gigante agrícola global sem comprometer o acesso da população a alimentos a preços justos e sem esgotar seus recursos naturais.