Flexibilização da Lei Cidade Limpa: SP rumo à poluição visual?

Fachadas comerciais SP (Canva)
A flexibilização da Lei Cidade Limpa em São Paulo acende um intenso debate na maior metrópole do Brasil. Aprovado em primeira votação pela Câmara Municipal, o projeto de lei de autoria do vereador Rubinho Nunes (União Brasil) propõe alterações significativas na legislação que, desde 2006, regula a publicidade visual e busca conter a poluição visual na cidade.
Sancionada na gestão de Gilberto Kassab, a Lei Cidade Limpa original foi amplamente celebrada como um marco no urbanismo paulistano, responsável por remover milhares de anúncios e outdoors que sobrecarregavam a paisagem urbana. Agora, a proposta do vereador Nunes, que ele classifica como uma “modernização”, reabre a discussão sobre os limites da publicidade no espaço público, colocando em lados opostos os argumentos de desenvolvimento econômico e a preservação da identidade visual e do bem-estar dos cidadãos. A medida, que ainda precisa passar por uma segunda votação para se tornar lei, já enfrenta forte resistência de parlamentares e especialistas, que temem um retrocesso e o retorno de um cenário visualmente caótico.
Este movimento legislativo ocorre em um contexto no qual a própria aplicação da lei original já enfrenta desafios de fiscalização. A proposta de flexibilização da Lei Cidade Limpa reintroduz formatos e locais de publicidade antes vetados, além de ampliar os limites existentes, levantando questionamentos sobre seus reais impactos.
A justificativa de atrair investimentos e gerar empregos, comparando São Paulo a centros como Nova York e Tóquio, é contestada por aqueles que defendem o legado da lei atual como um consenso bem-sucedido e uma conquista para a qualidade de vida urbana. Nessa cidade agora que se vê, novamente, diante da encruzilhada entre permitir uma maior exploração comercial do espaço visual ou manter as restrições que a tornaram referência no combate à poluição visual.
O retorno da poluição visual? Principais mudanças propostas
A proposta de flexibilização da Lei Cidade Limpa traz consigo uma série de alterações que preocupam urbanistas e defensores da legislação atual. Uma das mudanças mais controversas é a permissão para que anúncios publicitários possam obstruir parcialmente a vista de patrimônios culturais. Monumentos icônicos como o Teatro Municipal e a Catedral da Sé poderiam ter até 70% de sua visibilidade comprometida por publicidade instalada nas proximidades, algo expressamente proibido pela lei vigente, que protege os chamados “bens de valor cultural”. Essa alteração representa um ataque direto a um dos pilares da lei original: garantir que a paisagem urbana e seus marcos históricos e culturais sejam preservados e acessíveis visualmente a todos.
Além disso, o projeto de flexibilização da lei do vereador Rubinho Nunes reabre a porta para a publicidade em locais onde hoje é estritamente vedada. Vias públicas, parques, praças, postes de iluminação, pontes, viadutos, túneis e até mesmo muros e empenas cegas de edifícios poderiam voltar a ostentar anúncios. A proposta também permite publicidade em parklets (pequenas áreas de convivência que ocupam vagas de estacionamento), totens de carregamento para veículos elétricos e jardins verticais, explorando novas superfícies para a veiculação de mensagens comerciais, inclusive luminosas. Outro ponto de grande impacto visual é o aumento do tamanho permitido para anúncios indicativos (como placas de lojas) em imóveis, que poderiam chegar a 12 m² em fachadas maiores, e a retirada do limite de um anúncio por imóvel, abrindo margem para uma proliferação descontrolada de letreiros e painéis.
Argumento econômico vs. legado visual: O que pesa mais?
O principal argumento do vereador Rubinho Nunes para justificar a flexibilização da Lei Cidade Limpa reside na promessa de desenvolvimento econômico. Em sua defesa do projeto, Nunes afirma que as mudanças tornariam São Paulo “muito mais atrativa para investimentos no que se refere a publicidade, gerando mais empregos e renda”. Ele evoca exemplos internacionais como a Times Square, em Nova York, e o distrito de Shinjuku, em Tóquio, conhecidos por sua intensa publicidade visual, sugerindo que a capital paulista poderia seguir um caminho semelhante para aumentar sua arrecadação. No entanto, essa comparação é vista com ceticismo por críticos, que apontam as diferenças culturais e urbanísticas entre essas cidades e São Paulo, além de questionarem se os supostos benefícios econômicos compensariam a perda da qualidade ambiental e visual conquistada com a lei de 2006.
A Lei Cidade Limpa original reduziu drasticamente a poluição visual, além de ter promovido uma revalorização do espaço urbano e da arquitetura paulistana, antes ocultos por um emaranhado de anúncios. Especialistas argumentam que a “limpeza” visual trouxe benefícios intangíveis, como a melhora do bem-estar da população e o fortalecimento da identidade da cidade, que podem ser mais valiosos a longo prazo do que a receita publicitária adicional. A flexibilização da Lei Cidade Limpa, portanto, coloca em xeque um modelo que, apesar de restritivo para o setor publicitário, foi amplamente reconhecido como um sucesso em termos de política urbana e que se tornou um raro consenso entre os paulistanos sobre a gestão do espaço público. A questão que paira é se a busca por mais receita justifica o risco de comprometer um dos poucos legados urbanísticos positivos e amplamente aceitos da cidade nas últimas décadas.
Críticas e resistência à flexibilização da lei: A “Lei da Cidade Suja”?
A proposta de flexibilização da Lei Cidade Limpa não passou sem contestações na Câmara Municipal. Vereadores de diferentes partidos se posicionaram contra o projeto, classificando-o como um “retrocesso” e um risco à qualidade de vida na cidade. A vereadora Renata Falzoni (PSB), arquiteta e urbanista, foi uma das vozes mais críticas, ironizando a proposta como a criação da “Lei da Cidade Suja”. Ela argumenta que o projeto de flexibilização da lei “desfigura radicalmente” a lei de 2006, um “sucesso” e “raro consenso” em política pública e urbanismo paulistano, priorizando “interesses privados” em detrimento do bem-estar coletivo.
Janaína Paschoal (PP) também se manifestou contrariamente, chamando o projeto de flexibilização da lei “grande retrocesso” e alertando que, na prática, ele “acaba” com a Lei Cidade Limpa, cuja fiscalização já seria deficiente. Ela prometeu articulação para modificar o texto antes da segunda votação. O vereador Dheison (PT) reforçou a crítica, afirmando que a cidade “avançou” com a lei atual e a proposta de Nunes representa um retorno a um passado de poluição visual. Essas críticas ressaltam a divisão de opiniões sobre o futuro da paisagem urbana de São Paulo e a importância de um debate aprofundado antes de qualquer alteração em uma flexibilização da lei tão emblemática e bem-sucedida como a Lei Cidade Limpa.