CPI investigará repasses de verbas a ONGs na Amazônia
A CPI das ONGs aprovou nesta terça-feira (20) o plano de trabalho apresentado pelo relator, senador Márcio Bittar (União-AC). O foco estará na investigação de repasses de verbas públicas e privadas, inclusive recebidas de organizações estrangeiras, a ONGs que atuam na Amazônia.
— Vamos tornar transparentes as relações de ONGs que na Amazônia recebem verbas do Estado no desempenho de funções públicas. Queremos tornar transparentes os critérios usados na hierarquia da distribuição de recursos entre os cuidados com as pessoas e os cuidados com a natureza. E enviaremos à Justiça indícios ou provas de irregularidades — adiantou Bittar.
Os senadores garantem que a CPI não pretende “demonizar” a atuação das ONGs na Amazônia, nem mesmo condenar as possibilidades de parcerias entre governos e ONGs. O foco será subsidiar o Parlamento, a Justiça e a sociedade no incremento desse modelo. Visando a esse objetivo, foram também aprovados requerimentos de acesso a informações do Tribunal de Contas da União (TCU), da Controladoria-Geral da União (CGU), do Itamaraty, do BNDES, da Polícia Federal, da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) e da Receita Federal.
A análise da documentação ditará o rumo das investigações, depoimentos e visitas da CPI a outros estados, segundo Bittar. Esse trabalho também deve subsidiar pedidos de auditorias do TCU em contratos, além do aprofundamento, junto à CGU, das investigações de contratos com indícios de irregularidades. Outra ação será solicitar ao TSE a lista das ONGs que tenham efetuado doações a partidos.
Ainda segundo adianta o relator, a CPI também pretende, no decorrer dos trabalhos, quebrar os sigilos bancário, fiscal e telemático de ONGs em cujas contas haja indícios de irregularidades.
O plano de trabalho e as primeiras ações da CPI foram aprovadas por unanimidade pelos senadores. O presidente do colegiado, Plínio Valério (PSDB-AM), reforçou que a CPI “não é contra o governo nem as ONGs”, mas entende que os habitantes da Amazônia já “estão cansados” de uma ingerência que consideram indevida nos rumos da região.
— Os amazônidas foram espoliados a vida inteira e continuamos sendo usados. Não aguentamos mais sermos espoliados, enganados e usados. O Ministério Público Federal, o Ibama e a Funai estão todos aparelhados, o governo não manda no Ibama ou na Funai. Quem faz os estudos barrando a construção de estradas, por exemplo, são as ONGs, mancomunadas com Ibama e Funai. Isso ocorre há décadas, precisamos estancar essa sangria — critica.
Para Plínio Valério, há um objetivo geopolítico em nível internacional que busca guardar os recursos da Amazônia visando a uma exploração futura, de viés colonialista. Já Zequinha Marinho (Podemos-PA) relata que um investimento de R$ 1,5 bilhão está estancado no Pará devido à insegurança jurídica que ronda a construção da ferrovia Ferrogrão.
— Uma empresa de grande porte suspendeu R$ 1,5 bilhão de investimentos no porto de Barcarena devido à insegurança jurídica na Ferrogrão. Uma ferrovia que será sustentável, que compensará com sobras qualquer eventual impacto ambiental, enquanto caminhões em rodovias adjacentes continuam jogando toneladas de gás de efeito estufa no escoamento da produção — lamenta.
Para Márcio Bittar, o “conluio” de ONGs com o Ministério Público também estaria prejudicando o desenvolvimento de Cruzeiro de Sul (AC).
— A pedido de algumas ONGs, o MPF mandou suspender a licitação do projeto de uma obra ligando Cruzeiro do Sul a Pucallpa [Peru]. Estão simplesmente condenando aquela região à eterna pobreza, pois é humanamente impossível, a 670 quilômetros de Rio Branco ou outras regiões, que a produção local escoe. A CPI precisa elucidar os mecanismos de financiamento dessa militância, cujo objetivo de fato é trabalhar contra hidrelétricas, estradas, pontes, estações minerais e contra que os índios sejam de fato donos de suas terras — disse Bittar.
Marina Silva e outras autoridades
Na reunião desta terça, a CPI aprovou convites a diversas personalidades, para que compareçam à comissão parlamentar de inquérito e prestem esclarecimentos. Entre os nomes, estão a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva; o diretor-geral da Abin, Luiz Fernando Correa; e o presidente do Ibama, Rodrigo Agostinho. No caso de Correa, Bittar quer detalhar eventuais investigações da Abin sobre envolvimento de ONGs com biopirataria.
Também foram chamados o deputado Ricardo Salles (PL-SP), ex-ministro do Meio Ambiente; o general Augusto Heleno, ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI); Marcelo Xavier, ex-presidente da Funai; e o procurador Eduardo Bim, ex-presidente do Ibama. As datas de todos os depoimentos ainda serão definidas por Plínio Valério.
Representantes de povos indígenas criticam a presença das organizações na região
Em junho deste ano, a comissão parlamentar de inquérito que investiga a atuação de ONGs na Amazônia, CPI das ONGs, ouviu três representantes de povos indígenas que criticam a presença das organizações na região. Eles denunciaram falta de transparência e de diálogo no trabalho das organizações, além do descaso com as demandas das comunidades locais.
Um dos participantes, Valdeci Baniwa, acusou ONGs de impedir a chegada de recursos de assistência social para as comunidades indígenas. Ele pertence a etnia baniwa, mas declarou que não falava como representante do seu povo e sim como morador da comunidade Castelo Branco, em São Gabriel da Cachoeira (AM). De acordo com o seu relato, o único benefício social que alcança várias comunidades da região é o Bolsa-Família.
— Dentro das terras indígenas, a desigualdade econômica e social a cada ano está aumentando. O Fundo Amazônia é muito falado, mas em nenhum momento chegou na ponta, na comunidade. Eu sou morador da comunidade, sou indígena que me criei pescando no rio Içana. Cadê aquele dinheiro doado pelos estrangeiros para as ONGs da região amazônica? Quem está sendo beneficiado? Nós vivemos de suor, trabalhamos.
Baniwa citou a ONG Instituto Socioambiental (ISA), que atua em quatro estados da Amazônia Legal. O ISA também foi citado por Alberto Brazão Goes, liderança do povo ianomâmi. Ele criticou a falta de transparência e de resultados em projetos tocados pela ONG.
— O ISA executou um projeto no Alto Rio Negro de criação de peixes. Acessaram a verba federal, não houve prestação de contas e o projeto não avançou, aí abandonaram. O que aconteceu? [Virou] criadouro de mosquito da malária. É isso que a gente deve herdar? É uma ofensa para nós. A mesma ONG tem um projeto [para vender] cogumelo ianomâmi no exterior. O grama do cogumelo custa 7 euros. Por que a mídia está dizendo que os ianomâmis estão morrendo por inanição, se existe um projeto que arrecada milhões? Queremos transparência. Acessou verba federal, acessou verba estrangeira, então mostra para nós quanto é e quanto nós vamos usufruir daquilo.
O senador Beto Faro (PT-PA) comentou que os problemas sociais nas comunidades indígenas são uma realidade conhecida e que é preciso desenvolver políticas para essas populações, mas criticou o tom de “distorção” nas falas dos representantes.
— Há uma situação, mas daí a ter uma ONG responsável por todas as mazelas criadas desde 1500? Acho que o ISA tem que vir aqui para explicar os seus procedimentos. O que não dá é para sair com a coisa acertada, [decidir] quem é o criminoso e buscar o crime para ele. Não há como dizer que temos problema só dentro de algumas comunidades. Não há como negar que tivemos um processo de desestruturação dos órgãos do governo federal para atuar junto às comunidades indígenas e ribeirinhas.
Faro também observou que é preciso cuidado ao decidir quais mecanismos a CPI vai indicar como soluções para os problemas encontrados. Para ele, a existência de associações e cooperativas é justa, mas medidas como liberar o garimpo em terras indígenas não são aceitáveis.
Representação
Valdecir Baniwa também afirmou que representantes da ONG têm o costume de “engavetar” reivindicações das comunidades indígenas, impedindo que os pleitos das comunidades cheguem ao poder público.
— As comunidades se juntam, fazem grupos de trabalho e colocam propostas. Só que as ONGs pegam as propostas depois da assembleia e engavetam, não levam para conhecimento do governo. Por falta da ajuda das ONGs é que as comunidades estão tomando outro caminho. Elas têm que buscar outra solução. As ONGs travam nosso desenvolvimento. Por isso estamos dizendo que quem tem que decidir somos nós.
Como consequência desse cenário, de acordo com Baniwa, os indígenas estão deixando suas terras e buscando outras formas de subsistência. Aqueles que ficam têm se organizado de forma paralela ao trabalho das ONGs.
— Os povos indígenas estão deixando suas comunidades e migrando para as cidades em busca de qualidade de vida para as suas famílias. Por falta de alternativa, algumas das comunidades estão constituindo cooperativas e associações sem a participação das ONGs. O objetivo é fazer renda dentro da comunidade, para poder permanecer lá. Se não tomarmos iniciativa, daqui a 10 anos não vai ter ninguém dentro das terras indígenas.
O senador Styvenson Valentim (Podemos-RN) quis saber como é feita a intermediação dos pleitos e de representação das comunidades indígenas pelas ONGs. Baniwa disse que os membros das comunidades não conhecem os responsáveis pelas organizações, cenário que o senador estranhou.
— Eles atuam na Amazônia, eles “falam” por vocês, eles dizem o que vocês precisam e o que querem, mas vocês não sabem nem quem são eles e quem gerencia? – indagou o senador.
Para o relator da CPI, senador Marcio Bittar (União-AC), a situação se assemelha a um “circo” e os habitantes locais não são considerados.
— Eu me incomodo muito com a suspeita de que se montou um circo em torno da questão da Amazônia. Os atores que estão decidindo por ela falam na preservação das comunidades indígenas, mas isso é apenas um discurso. A prática é outra. Há mais de 40 anos se gasta dinheiro em seminários, em encontros internacionais, e a pobreza na Amazônia só aumentou— avaliou Bittar.
Autonomia
Brazão Goes disse que todas as nações indígenas querem “autonomia e protagonismo” para gerirem suas terras sem interferência de organizações estrangeiras. Segundo ele, a presença de ONGs norte-americanas e europeias atinge a dignidade dos povos indígenas brasileiros.
— Nós somos os verdadeiros seres humanos da floresta. Nós já sabemos como lidar com a nossa floresta. Não precisamos que ONGs do estrangeiro digam como cuidar da nossa terra. É indigno uma nação que já exterminou os nossos parentes querer ensinar ao Brasil como se deve cuidar dos povos originários.
Liderança indígena da região do Médio Solimões, Adriel Kokama afirmou que o anseio dos povos indígenas é para que possam trabalhar pelos próprios interesses, sem a intermediação de organizações estrangeiras. Ele questionou a restrição ao exercício de atividades econômicas e extrativistas nas terras indígenas, afirmando que os indígenas precisam dos recursos para tirar o seu sustento.
— Por que não podemos utilizar as terras, se elas são nossas? Não podemos trabalhar, criar gado, plantar, tirar o minério. Se a terra é da União, que nos dê o título. Nós não precisamos de terra demarcada, precisamos do título da terra que é nossa. Não precisamos guardar para ninguém. Nós somos donos da terra. Precisamos criar vergonha e trabalhar.
Kokama também criticou a destinação de verbas para que ONGs façam trabalho de preservação na Amazônia, argumentando que os “europeus” não têm ligação real com a floresta e estão lá apenas para “tirar fotos”. Para ele, o dinheiro seria melhor gasto se destinado aos moradores locais.
Requerimentos
Essa foi a primeira oitiva da CPI, que foi instalada no início do mês. Antes dela, também nesta terça, a comissão aprovou 23 requerimentos com pedidos de informações a governos estaduais e municipais, propostas de audiências públicas e convites para novas oitivas.
No final da reunião, a CPI ainda aprovou mais dois requerimentos convidando representantes do Tribunal de Contas da União (TCU) e do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para falarem sobre a gestão e a fiscalização de recursos do Fundo Amazônia.
Fonte: Agência Senado