Desigualdade, o papel do mercado e do Estado

DESIGUALDADE

Desigualdade, substantivo que define algo não estar igual, que há digferenças entre coisas, pessoas e grupos. Essa palavra ecoou nos noticiários recentemente, após a declaração do governador do Estado que mais arrecada no Brasil. Ele afirmou que o mercado, por si só, seria capaz de reduzir a desigualdade social no país. Essa fala gerou um debate intenso, dividindo opiniões entre defensores e críticos da ideia. Para muitos, a crença de que o mercado é a única força motriz para a transformação econômica e social é um pilar do liberalismo. Argumenta-se que a livre concorrência, a inovação e a busca por lucro, características inerentes ao mercado, geram riqueza que, eventualmente, se espalha por toda a sociedade, diminuindo as disparidades. No entanto, essa perspectiva é frequentemente contestada por aqueles que veem o Estado como um ator fundamental na promoção da justiça social e na correção das falhas de mercado.

A declaração do governador Tarcísio de Freitas, de São Paulo, em 5 de setembro de 2025, durante um evento na B3, a bolsa de valores brasileira, foi categórica: “Estado não dá conta, e é o mercado que vai reduzir a desigualdade do Brasil”. Essa posição reflete uma visão de que a intervenção estatal é ineficiente e que a solução para os problemas sociais reside na desregulamentação e na ampliação do espaço para a iniciativa privada. A repercussão foi imediata. Políticos da oposição, como a presidente do Partido dos Trabalhadores, Gleisi Hoffmann, criticaram duramente a fala, afirmando que o programa de Tarcísio visa, na verdade, “ampliar a desigualdade” e que “só o Estado é capaz de reduzir a desigualdade”.

O cerne da discussão reside na natureza da desigualdade. É ela um problema a ser resolvido pelas forças intrínsecas do mercado, ou exige uma ação deliberada e coordenada do Estado? A história econômica mundial oferece exemplos de ambos os lados. Países com economias de mercado robustas, como os Estados Unidos, ainda enfrentam altos níveis de desigualdade de renda e riqueza. Por outro lado, nações com forte intervenção estatal e políticas de bem-estar social, como os países nórdicos, apresentam índices de desigualdade significativamente menores. A complexidade da desigualdade não permite uma resposta simplista. Ela é multifacetada, englobando ampliação da renda, enquando também garante o acesso à educação, saúde, moradia e oportunidades. Reduzir a desigualdade, portanto, requer uma abordagem holística que considere tanto o dinamismo do mercado quanto a capacidade regulatória e redistributiva do Estado.

O debate sobre o papel do mercado na redução da desigualdade não é novo. Economistas clássicos, como Adam Smith, defendiam a “mão invisível” do mercado como um mecanismo eficiente de alocação de recursos e geração de riqueza. No entanto, o próprio Smith reconhecia a necessidade de certas intervenções estatais para garantir a justiça e a ordem social. Já John Maynard Keynes, em resposta à Grande Depressão, argumentou que o Estado tem um papel crucial na estabilização da economia e na promoção do pleno emprego, o que indiretamente contribui para a redução da desigualdade. A polarização atual reflete essa dicotomia histórica, com cada lado defendendo sua visão como a mais eficaz para combater a desigualdade. A realidade, contudo, sugere que a solução ideal pode estar em um equilíbrio dinâmico entre as forças de mercado e a ação governamental, onde cada um complementa o outro para construir uma sociedade mais justa e equitativa. A desigualdade é um desafio persistente, e a busca por soluções eficazes deve transcender ideologias rígidas, abraçando a complexidade do problema e as diversas ferramentas disponíveis para enfrentá-lo.

O paradoxo do tarifaço e a desigualdade de preços

A recente imposição de tarifas sobre produtos brasileiros pelos Estados Unidos, popularmente conhecida como “tarifaço”, trouxe à tona um paradoxo interessante no debate sobre o papel do mercado e a desigualdade. Em um mês de cenário de redução das exportações de certos produtos agrícolas, como carne e café, o mercado interno brasileiro já experimenta uma queda nos preços desses alimentos e, consequentemente, uma diminuição da inflação. Essa situação, à primeira vista, parece contradizer a ideia de que o mercado, deixado à sua própria sorte, sempre agiria para o benefício da população, especialmente no que tange à desigualdade de acesso a bens essenciais. O agronegócio, impulsionado pela lógica de mercado, prioriza a exportação para maximizar lucros, o que pode levar à escassez e ao aumento dos preços no mercado interno, impactando diretamente a desigualdade social.

O tarifaço, que impôs uma taxa de 50% sobre diversos produtos brasileiros, começou a valer em 6 de agosto de 2025. A medida, embora prejudicial para os exportadores, teve um efeito colateral inesperado no Brasil: a queda dos preços de alguns alimentos. Estudos apontam que a redução nos preços de atacado de carne e café, por exemplo, já se refletiu no bolso do consumidor em agosto. Essa dinâmica revela uma falha de mercado: a priorização da exportação pelo agronegócio, mesmo diante da fome e da insegurança alimentar no país.

O Brasil é um dos maiores produtores de alimentos do mundo, mas paradoxalmente, uma parcela significativa de sua população ainda sofre com a fome. Especialistas argumentam que a produção agropecuária tem sido mais voltada para a exportação, o que prejudica o abastecimento interno e contribui para a inflação de alimentos.

Essa situação expõe a complexidade da desigualdade e como as forças de mercado podem, em certas circunstâncias, agravar as disparidades sociais. Quando o agronegócio decide exportar grandes volumes de produtos, ele responde a incentivos de mercado, como preços internacionais mais atrativos. No entanto, essa decisão tem consequências diretas para o consumidor brasileiro, especialmente para as famílias de baixa renda, que destinam uma parcela maior de seu orçamento para a alimentação. A escassez de produtos no mercado interno, resultante da priorização da exportação, eleva os preços e torna os alimentos menos acessíveis, aprofundando a desigualdade. O tarifaço, ao reduzir a atratividade da exportação para alguns produtos, forçou o agronegócio a direcionar parte de sua produção para o mercado interno, o que, por sua vez, levou à queda dos preços. Isso demonstra que a intervenção externa, mesmo que não intencional, pode ter um impacto positivo na redução da desigualdade de acesso a alimentos.

O caso do tarifaço serve como um estudo de caso para a discussão sobre o papel do mercado na redução da desigualdade. Ele sugere que, em certas situações, a ausência de regulação ou a priorização exclusiva dos interesses de mercado podem levar a resultados que aumentam a desigualdade, em vez de diminuí-la. A inflação de alimentos, por exemplo, tem sido um fator importante na deterioração do poder de compra das famílias brasileiras, e a priorização das exportações pelo agronegócio é apontada como uma das causas. Portanto, a ideia de que o mercado, por si só, resolverá a desigualdade, precisa ser vista com cautela. A experiência do tarifaço indica que, para garantir o acesso a bens essenciais e mitigar a desigualdade, pode ser necessária uma combinação de políticas públicas e mecanismos de mercado que incentivem o abastecimento interno e protejam os consumidores mais vulneráveis. A desigualdade é um problema complexo, e a solução exige uma análise cuidadosa das interações entre as forças de mercado e as políticas governamentais.

Lições internacionais e o caminho para a desigualdade zero

A busca por uma sociedade com menor desigualdade não é um desafio exclusivo do Brasil. Diversos países ao redor do mundo enfrentam ou enfrentaram problemas semelhantes, e suas experiências oferecem lições valiosas sobre o papel do mercado e das políticas públicas na construção de um cenário mais equitativo. A ideia de que o mercado, por si só, pode reduzir a desigualdade é frequentemente confrontada com a realidade de que, sem uma estrutura regulatória e redistributiva adequada, as forças de mercado podem, na verdade, acentuar as disparidades. A história mostra que as nações que obtiveram sucesso na redução da desigualdade geralmente combinaram o dinamismo do mercado com uma forte atuação estatal em áreas como educação, saúde, proteção social e tributação progressiva.

Um exemplo notável é o dos países nórdicos, como Suécia, Noruega e Dinamarca. Essas nações são conhecidas por seus altos níveis de bem-estar social e baixos índices de desigualdade. Embora possuam economias de mercado desenvolvidas, a intervenção estatal é significativa. Eles investem pesadamente em educação pública de qualidade, saúde universal e sistemas de seguridade social robustos. Além disso, praticam uma tributação progressiva, onde os mais ricos pagam uma proporção maior de impostos, e os recursos são redistribuídos para financiar serviços públicos e programas sociais. Essa combinação de mercado e Estado tem sido fundamental para garantir que o crescimento econômico beneficie a todos, e não apenas uma pequena parcela da população, combatendo a desigualdade de forma eficaz.

Por outro lado, países com uma abordagem mais liberal, que confiam predominantemente no mercado para resolver a desigualdade, como os Estados Unidos, frequentemente apresentam maiores disparidades de renda e acesso a serviços básicos. Apesar de serem economias altamente desenvolvidas, a ausência de um sistema de bem-estar social abrangente e a menor progressividade tributária contribuem para a persistência da desigualdade. O Fundo Monetário Internacional (FMI), uma instituição que tradicionalmente defende políticas de mercado, tem reconhecido a importância de reduzir a desigualdade para gerar oportunidades e promover o crescimento econômico sustentável. Isso indica uma mudança de perspectiva, reconhecendo que a desigualdade excessiva pode ser um entrave ao desenvolvimento, e que o Estado tem um papel a desempenhar na sua mitigação.

No contexto brasileiro, a discussão sobre a desigualdade e o papel do mercado ganha contornos ainda mais urgentes. O país é um dos mais desiguais do mundo, e a pandemia de COVID-19 exacerbou ainda mais essa realidade. A experiência do tarifaço, que demonstrou como a redução das exportações pode impactar positivamente os preços dos alimentos no mercado interno, sugere que a priorização do mercado externo pelo agronegócio pode ter um custo social significativo.

Para combater a desigualdade de forma efetiva, o Brasil precisa ir além da retórica e implementar políticas públicas que complementem as forças de mercado. Isso inclui fortalecer a educação pública, expandir o acesso à saúde, investir em infraestrutura, promover a reforma tributária para torná-la mais justa e criar mecanismos de proteção social que garantam uma rede de segurança para os mais vulneráveis. A desigualdade não é um problema que o mercado resolverá sozinho; ela exige um esforço conjunto da sociedade, do Estado e do próprio mercado, trabalhando em harmonia para construir um futuro mais equitativo. A lição dos países que obtiveram sucesso é clara: o caminho para a redução da desigualdade passa por um Estado atuante e por políticas que garantam que os benefícios do crescimento econômico sejam compartilhados por todos.

Deixe uma resposta