
Foto: Divulgação/Governo de SP
O Centro Administrativo Campos Elíseos, um projeto de iniciativa do governo do estado de São Paulo, tem gerado intensos debates e levantado sérias preocupações. Previsto para ser implementado por meio de uma Parceria Público-Privada (PPP) com duração de 30 anos, o empreendimento visa centralizar órgãos governamentais, prometendo ganhos de eficiência e redução de custos. No entanto, a análise do edital SPI-006/2025 e de relatórios técnicos, juntamente com informações obtidas em diversas fontes, revela uma série de problemas graves que colocam em xeque a transparência, a legalidade e a real vantajosidade do projeto para o interesse público. As controvérsias abrangem desde a falta de publicidade de estudos cruciais até a omissão de questões sociais e urbanísticas, sugerindo que os benefícios podem ser mais direcionados ao setor privado do que à população paulista.
Falta de Transparência e Ilegalidades no Edital
Um dos pontos mais criticados do edital SPI-006/2025 é a flagrante falta de publicidade e transparência, especialmente no que tange ao Estudo de Viabilidade Técnico-Econômica (EVTEA). Conforme apontado na análise jurídica desta reportagem, a não divulgação desse estudo contraria diretamente o princípio da publicidade, previsto no artigo 37 da Constituição Federal, e o artigo 9º da Lei 11.079/2004, que exige a realização e publicação prévia do EVTEA para projetos de PPP. Embora o governo tenha realizado consultas públicas e audiências, com 268 contribuições recebidas, a ausência do EVTEA compromete a transparência técnica do processo licitatório. A Lei 14.133/2021, que rege as licitações e contratos administrativos, também exige amplo planejamento e prévia autorização para parcerias, com a publicação de documentos no Portal Nacional de Contratações (PNCP). A análise ressaltou não haver indicação pública de Estudo Técnico Preliminar (ETP) ou de autorização prévia específica ao projeto, sugerindo descumprimento dos requisitos de planejamento.
Além disso, a conformidade com a Lei de PPP (Lei 11.079/2004) é questionável. O artigo 9º da referida lei exige que os estudos de viabilidade sejam previamente divulgados no site oficial, condicionando o início da licitação à autorização escrita fundamentada nesse estudo. A ausência de evidências de que esses requisitos foram atendidos documentalmente levanta sérias dúvidas sobre a legalidade do processo. A eventual contratação sem base em um EVTEA publicado afronta diretamente os artigos 9º e 10º da Lei de PPP.
Outro aspecto preocupante é a matriz de riscos. A Lei de PPP exige que o contrato defina claramente as responsabilidades de cada parte e aloque os riscos de forma equilibrada. No entanto, sem acesso à matriz de riscos, não é possível aferir se há uma sobrecarga indevida do poder concedente ou do concessionário. A minuta contratual chega a citar a existência da matriz de risco (item 15.2), contundo, não há tal matriz da documentação divulgada. A falta de disponibilização da matriz de riscos impede conhecer e estabelecer o controle social sobre a alocação de riscos, o que pode resultar em prejuízos para o Estado.
Vantajosidade Questionável e Riscos Financeiros para o Estado
A estimativa de custos do projeto, em torno de R$ 5,4 bilhões, e a contrapartida pública de até R$ 69 milhões por mês, têm sido alvo de fortes críticas. Ao longo dos 30 anos de concessão, o governo pagaria cerca de cinco vezes o custo da obra, sugerindo uma baixa economicidade. Essa estrutura financeira massiva levanta dúvidas sobre a vantajosidade exigida pela Lei de PPP (Lei 11.079/04, art. 4º) e viola o princípio da eficiência, pois o ônus estatal é muito superior ao aportado pela concessionária.
Os documentos analisados também não apresentam dados numéricos do modelo atual de acomodação dos órgãos, como aluguéis e manutenção, impedindo uma comparação direta com os gastos futuros. Embora o projeto reitere qualitativamente que a PPP deve gerar economias para o Estado, não há projeções ou cenários quantitativos detalhando exatamente quais seriam essas economias. As estimativas financeiras são apresentadas somente no sentido de viabilizar a PPP, sem fornecer cálculos de redução de despesas estaduais explícitos.
Além disso, o edital e o contrato contêm cláusulas de alocação de risco que podem onerar financeiramente o Estado. Eventos como mudanças unilaterais impostas ao contrato (fato do príncipe) e revisões de obrigações contratuais podem levar o Estado a recompor o equilíbrio econômico-financeiro do contrato, arcando com eventuais custos adicionais. A inadimplência ou atraso do próprio Estado no pagamento da contraprestação mensal, ou dos aportes previstos também são riscos relevantes, com previsão de juros de mora em caso de atraso. Em resumo, os riscos financeiros identificados incluem possíveis custos extras ao Estado decorrentes de mudanças legais/unilaterais, atrasos ou falhas no repasse orçamentário e outros eventos excepcionais definidos no contrato.
Impactos Sociais e Urbanísticos Ignorados
O projeto do Centro Administrativo Campos Elíseos tem sido severamente criticado por ignorar questões urbanísticas e sociais relevantes. Especialistas apontam que o edital não trata do destino dos cerca de 800 moradores da área, que se encontram em Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), nem das obrigações de requalificação do entorno. Essa omissão fere normas do Estatuto da Cidade (CF art. 182, art. 37, §4º), que impõem função social à área e participação popular. A falta de análises de impactos urbanos e garantias de ressarcimento aos atingidos compromete a legitimidade e a moralidade do certame.
Um levantamento do Instituto Pólis, em agosto de 2024, revelou que o centro de São Paulo possui 87 mil imóveis vagos que poderiam ser utilizados como moradia. A escolha de subsidiar um projeto de grande porte como este, em detrimento da utilização de imóveis vazios para moradia, ou até mesmo para acomodar as estruturas administrativas do estado, é vista como uma afronta, considerando especialmente a necessidade de moradia na cidade. O projeto é visto por alguns como um impulsionador da especulação imobiliária e da gentrificação, beneficiando o setor de construção em detrimento da população que já reside na região central.
Critérios de Julgamento e Competitividade: Um Cenário de Baixa Concorrência
O edital estabelece o julgamento pelo “maior desconto” sobre a contraprestação máxima, fixada em R$ 69.039.844,80 mensais. Embora esse critério seja objetivo e numérico, ele apresenta insuficiências significativas. A principal delas é a ausência de um critério de desempate e de um valor mínimo de desconto. Isso significa que, na prática, se somente um interessado apresentar 0% de desconto, ele será o vencedor, pagando o valor máximo e sem competitividade efetiva. A Lei 14.133 exige clareza e isonomia, e a falta de regras de desempate (como sorteio ou melhor oferta técnica) é uma lacuna objetável.
A legalidade do modelo de disputa, que permite que um único licitante vença sem oferecer desconto, efetivamente “congela” a concorrência. O artigo 48 da Lei 14.133 prevê que, havendo somente um interessado, o poder público pode contratar diretamente. No entanto, o edital antecipa esse cenário negocial ao não exigir um número mínimo de propostas, facilitando a continuidade do certame mesmo sem competição real, uma situação atípica em licitações competitivas.
As exigências de habilitação, como a formação de Sociedade de Propósito Específico (SPE) e um capital social mínimo de R$ 543 milhões (10% do investimento), embora alinhadas à Lei de PPP e a critérios de solidez financeira, elevam consideravelmente o patamar de participação. Isso pode restringir a competição a poucos grandes grupos, apesar de o edital aceitar consórcios e participação estrangeira. A combinação da exigência de experiência prévia em obras de grande vulto e atuação anterior na gestão de ativos similares, somada ao capital elevado, pode, na prática, limitar a competitividade a um número reduzido de empresas.
A Urgência de Revisão e Transparência
O edital SPI-006/2025 para o Centro Administrativo Campos Elíseos apresenta deficiências sérias que comprometem a sua validade e a sua conformidade com os princípios da administração pública. A omissão na divulgação do Estudo de Viabilidade Técnico-Econômica (EVTEA), a fragilidade dos critérios de julgamento que podem anular a competitividade, um modelo financeiro que parece favorecer desproporcionalmente a iniciativa privada, e as lacunas nas cláusulas contratuais de fiscalização são pontos críticos que exigem atenção imediata. Além disso, a desconsideração do impacto social e urbanístico na área, especialmente no que tange ao reassentamento dos moradores locais, revela uma falha grave na abordagem do projeto.
Diante dessas inconsistências, a revisão do edital, a divulgação completa dos estudos de base e o detalhamento das regras contratuais são medidas urgentes e necessárias. A não adoção dessas providências pode levar à invalidação do processo licitatório e, mais importante, a um projeto que não atende verdadeiramente ao interesse público, mas sim a interesses específicos. A transparência e a participação social devem ser pilares inegociáveis em empreendimentos dessa magnitude, garantindo que os recursos públicos sejam aplicados de forma eficiente e justa para toda a população paulista.