Previdência Social em risco: os impactos financeiros do MEI

Foto: Agência Senado
A Previdência Social brasileira enfrenta uma ameaça silenciosa que pode comprometer sua sustentabilidade nas próximas décadas. O Microempreendedor Individual (MEI), criado em 2008 para formalizar trabalhadores por conta própria, cresceu exponencialmente, mas trouxe consigo graves consequências para o equilíbrio financeiro do sistema previdenciário. O programa, que começou com 44 mil inscritos em 2009, alcançou a impressionante marca de 16,3 milhões de cadastrados em 2024.
Este crescimento acelerado, no entanto, esconde um problema estrutural. Estudos recentes revelam que o MEI poderá gerar um déficit estimado em R$ 1,9 trilhão nas contas da Previdência Social nas próximas sete décadas. Este valor, quando trazido a valor presente com taxa de desconto de 3% ao ano, representa um rombo de R$ 711 bilhões nos cofres públicos.
A contribuição mensal de somente 5% do salário mínimo, estabelecida para os microempreendedores, é insuficiente para custear os benefícios futuros. Apesar da carga tributária diminuída, o setor possui uma inadimplência fiscal preocupante. Além disso, o programa apresenta problemas de focalização, beneficiando principalmente pessoas que não estão entre as mais vulneráveis da população. Portanto, é fundamental entender os riscos que o MEI representa para a Previdência Social e discutir alternativas para garantir a sustentabilidade do sistema, como aponta o estudo publicado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), aqui resumido e comentado.
O crescimento acelerado do MEI e seus efeitos na Previdência Social
O crescimento do MEI tem sido extraordinário desde sua criação. Entre 2009 e 2024, o número de inscritos aumentou a uma taxa média anual de 48,3%, passando de 44 mil para 16,3 milhões. Em termos práticos, isso significa um acréscimo de aproximadamente 1,1 milhão de novos microempreendedores por ano.
Este ritmo de expansão contrasta fortemente com o desempenho do total de contribuintes do Regime Geral de Previdência Social (RGPS). Enquanto o número de MEIs com pelo menos uma contribuição anual cresceu 19,8% ao ano entre 2011 e 2023, o RGPS como um todo registrou um aumento de somente 1,2% ao ano no mesmo período.
Como consequência, a participação do MEI no total de contribuintes do RGPS saltou de 1,6% para 11,8% entre 2011 e 2023. Mais impressionante ainda é o aumento da participação do MEI no total de contribuintes individuais, que cresceu de 8,8% para 46,8% no mesmo período.
Estes números revelam uma tendência preocupante: a migração de segurados de planos mais equilibrados do ponto de vista atuarial para o MEI, que oferece condições mais vantajosas, mas é financeiramente insustentável para a Previdência Social. O plano completo para contribuintes individuais, com alíquota de 20%, que até 2006 era o único disponível, caiu em termos absolutos de 8,3 para 8 milhões entre 2011 e 2023.
Esta substituição não resulta em ganhos reais de cobertura previdenciária, mas fragiliza ainda mais o equilíbrio financeiro do sistema. A questão que se coloca é: até que ponto esse crescimento ocorre em substituição ao emprego formal com carteira assinada?
O desequilíbrio financeiro e atuarial causado pelo MEI na Previdência Social
O impacto financeiro do MEI nas contas da Previdência Social é alarmante. Simulações baseadas nos dados de 2020 mostram que o programa gerará um déficit de aproximadamente R$ 1,9 trilhão nas próximas sete décadas, considerando somente os microempreendedores que fizeram pelo menos uma contribuição naquele ano.
Este valor, quando trazido a valor presente com uma taxa de desconto de 3% ao ano, representa um déficit atuarial de R$ 711 bilhões. Mesmo utilizando uma taxa de desconto mais alta, de 4% ao ano, o déficit ainda seria de R$ 531 bilhões, uma cifra extremamente significativa.
A principal razão para este desequilíbrio é a contribuição mensal de somente 5% do salário mínimo, absolutamente insuficiente para custear os benefícios futuros. Ao se considerar um cenário com ganho real do salário mínimo de 1% ao ano, o quadro fica ainda mais grave, com o déficit atuarial a valor presente chegando a R$ 974 bilhões.
O pico de despesa com o MEI está previsto para a década de 2050, quando os microempreendedores atuais começarem a se aposentar em massa. Neste período, a receita gerada pelo programa será insignificante comparada à despesa com benefícios.
É importante ressaltar que esta análise considera somente os gastos com aposentadoria por idade, desconsiderando benefícios de risco como auxílio-doença, pensão por morte e aposentadoria por invalidez, que também serão concedidos aos microempreendedores. Portanto, o impacto real pode ser ainda maior do que o estimado.
A focalização inadequada do MEI e seus riscos para a Previdência Social
Um programa que oferece subsídios tão significativos como o MEI deveria, em tese, beneficiar principalmente a população de baixa renda. No entanto, dados da PNAD Contínua Anual de 2023 revelam uma realidade bem diferente: 82,2% dos microempreendedores estão entre os 50% mais ricos da população brasileira, considerando a renda domiciliar per capita.
Somente 17,8% dos MEIs estão entre os 50% mais pobres, demonstrando uma focalização inadequada do programa. Esta distorção é ainda mais evidente ao se analisar o perfil educacional dos microempreendedores. A média de anos de estudo do MEI (12,3 anos) é muito similar à dos empregados com carteira assinada (11,9 anos) e significativamente superior à dos trabalhadores por conta própria sem CNPJ (9,5 anos) e beneficiários do BPC/LOAS (5,2 anos).
Na prática, o MEI está oferecendo um esquema previdenciário altamente subsidiado para pessoas que, em sua maioria, teriam condições de contribuir com alíquotas mais adequadas. Há uma tendência de aumento da participação de pessoas com ensino superior completo no programa, distanciando-se cada vez mais do perfil de trabalhadores vulneráveis que originalmente se pretendia proteger.
Esta focalização inadequada agrava os riscos para a Previdência Social, ao ampliar o número de beneficiários de um sistema quase não contributivo, comprometendo ainda mais o equilíbrio financeiro do RGPS. O argumento de que o MEI seria destinado a formalizar trabalhadores autônomos como pipoqueiros e similares dá lugar a um perfil heterogêneo que inclui um percentual relevante de trabalhadores com ensino médio e/ou superior completo.
Mitos e realidades sobre o MEI e seus impactos na Previdência Social
Diversos argumentos são frequentemente utilizados para defender o MEI, mas muitos deles não resistem a uma análise mais aprofundada. Um dos principais mitos é que o programa teria reduzido significativamente a informalidade no Brasil. No entanto, mesmo com o crescimento explosivo do MEI, dois em cada três trabalhadores por conta própria (67,5%) não contribuíam para a Previdência Social em 2023.
Os indicadores de cobertura previdenciária mostram estabilidade ou até mesmo piora entre 2012 e 2022, sugerindo que o MEI não gerou ganhos estruturais em termos de inclusão previdenciária. Há evidências de que o programa promoveu, em larga escala, a migração de outros tipos de segurados, inclusive empregados com carteira assinada, para o MEI.
Outro argumento equivocado é que o MEI seria vantajoso porque seus beneficiários seriam potenciais recebedores do BPC/LOAS, gerando assim alguma receita para a Previdência Social. Este raciocínio ignora que o perfil do MEI é completamente diferente dos beneficiários do BPC/LOAS, como demonstrado pela análise do nível educacional.
Além disso, quando um potencial beneficiário do BPC/LOAS se torna MEI, passa a ter direito a benefícios de risco como auxílio-doença, pensão por morte e aposentadoria por invalidez, além de, no caso das mulheres, antecipar o recebimento do benefício em três anos. A aposentadoria também paga 13º salário e gera pensão, diferentemente do BPC/LOAS. Por todos esses motivos, o aumento da despesa pode ser maior que a arrecadação.
Dados do IBGE revelam que 72,1% dos MEIs ativos em 2022 tiveram algum vínculo formal de trabalho entre 2009 e 2022, reforçando a tese de que o programa está gerando migração relevante e não necessariamente resgatando trabalhadores estruturalmente informais.
Conclusão
A Previdência Social brasileira enfrenta um desafio significativo com o crescimento acelerado do MEI. Apesar das boas intenções iniciais, o programa tem gerado desequilíbrios financeiros e atuariais que ameaçam a sustentabilidade do sistema previdenciário no longo prazo.
O déficit estimado de R$ 1,9 trilhão nas próximas sete décadas é um sinal claro de que ajustes são necessários. A contribuição de somente 5% do salário mínimo é insuficiente para custear os benefícios futuros, e a focalização inadequada do programa agrava ainda mais o problema, beneficiando principalmente pessoas que não estão entre as mais vulneráveis.
Infelizmente, a tendência política tem sido de ampliar o MEI, pois o horizonte político é de curto prazo e voltado para o calendário eleitoral. No entanto, há necessidade urgente de reestruturar essa política pública, considerando seus impactos de médio e longo prazo na Previdência Social.
O rápido e intenso envelhecimento populacional já representa um desafio para a sustentabilidade do RGPS, e o MEI adiciona uma pressão extra sobre o sistema. É fundamental que gestores públicos e legisladores compreendam os riscos envolvidos e tomem medidas para garantir que o programa cumpra seu objetivo original de formalização sem comprometer o equilíbrio financeiro da Previdência Social brasileira.