Corrupção: 10 anos de Lava Jato e a construção civil

CORRUPÇÃO

A corrupção no Brasil nunca esteve em maior evidência antes desses últimos dez anos. O período é marcado pelo início da Operação Lava Jato, uma investigação que prometia revolucionar o combate à corrupção no Brasil, mas cujos desdobramentos lançaram uma longa sombra sobre diversos setores da economia e da sociedade. O epicentro desse terremoto institucional e econômico foi, sem dúvida, o setor de construção civil pesada, outrora motor de crescimento e desenvolvimento, mas que se viu profundamente abalado pelas revelações de esquemas ilícitos envolvendo grandes empreiteiras e agentes públicos.

A operação expôs uma rede complexa de corrupção sistêmica, mas também desencadeou uma crise sem precedentes para as empresas envolvidas e para a cadeia produtiva como um todo. Analisar os impactos econômicos e sociais dessa década, com um olhar crítico e imparcial, é fundamental para compreender as transformações no setor, a situação atual das companhias que protagonizaram o escândalo e o difícil balanço entre os avanços no combate à corrupção e os severos prejuízos infligidos à economia e à sociedade brasileira. O legado da Lava Jato permanece em disputa, levantando questionamentos sobre os métodos empregados, os resultados alcançados e se, afinal, há o que comemorar.

O terremoto econômico: construção civil sob escombros

A Operação Lava Jato atingiu em cheio o coração financeiro do setor de construção civil pesada no Brasil. Antes impulsionado por vultosos investimentos públicos e um ciclo de crescimento econômico, o segmento viu seu faturamento despencar e suas principais empresas mergulharem em uma crise profunda após as revelações dos esquemas de corrupção. Estudos acadêmicos, como a análise de Ferreira (2016) realizada na UTFPR, já apontavam, ainda nos primeiros anos da operação, uma correlação direta entre a investigação e a retração do setor. A pesquisa demonstrou como a dependência de contratos governamentais, muitos dos quais obtidos através de práticas ilícitas, tornou as grandes empreiteiras vulneráveis. A descoberta da corrupção sistêmica levou à suspensão de contratos, ao bloqueio de pagamentos e a uma drástica redução no acesso ao crédito, asfixiando financeiramente as companhias.

O artigo de Campos (2019), publicado na revista Mediações, aprofunda essa análise, descrevendo um cenário de falências, pedidos de recuperação judicial e uma significativa desestruturação produtiva. A crise econômica que se abateu sobre o país a partir de 2015 agravou o quadro, mas os efeitos da Lava Jato foram determinantes para a fragilização específica das empreiteiras. O autor destaca um processo de desnacionalização, com a venda de ativos estratégicos para grupos estrangeiros, e a retração do investimento em infraestrutura, impactando não apenas as empresas diretamente envolvidas na corrupção, mas toda a cadeia produtiva. A dificuldade em obter novas licitações e a mancha reputacional dificultaram a recuperação, mesmo para empresas que buscaram acordos de leniência. O impacto foi sentido na queda abrupta da receita bruta das maiores construtoras e na redução drástica dos investimentos, refletindo a paralisia gerada pela desconfiança e pela instabilidade jurídica e econômica decorrente da operação Lava Jato.

As brechas legais: como a Lei de Licitações facilitou a corrupção

A Operação Lava Jato serviu também para lançar luz sobre as fragilidades da legislação que deveria coibir práticas ilícitas. Conforme análise de artigo de Portugal e Alvez de Moraes (2024), resumido pela Anuva Institute (2025), a Lei 8.666/1993, embora criada com o intuito de combater a corrupção após o escândalo Collor, paradoxalmente continha brechas que facilitaram as práticas ilícitas no setor de construção civil. A permissão para licitações baseadas em anteprojetos pouco detalhados, por exemplo, gerava incertezas e inflava custos, abrindo margem para o superfaturamento e o pagamento de propinas. Essa falta de especificidade técnica criava um terreno fértil para a manipulação.

Outro ponto crucial em destaque foi a manipulação dos orçamentos-base através de técnicas como o “Jogo de Planilha”. Empresas conseguiam apresentar propostas aparentemente competitivas, mas com distorções que permitiam a obtenção de aditivos contratuais vultosos posteriormente, burlando o espírito da concorrência. A ausência de estudos de viabilidade técnica rigorosos e a falta de transparência nas fases preliminares dos editais também foram apontadas como falhas graves. Isso permitia que empresas influenciassem ilegalmente as regras da licitação, direcionando os contratos e perpetuando o ciclo de corrupção. Essas brechas legais, exploradas sistematicamente pelo cartel de empreiteiras em conluio com agentes públicos, foram um elemento fundamental para a escala e a longevidade dos esquemas corruptos desvendados pela Lava Jato, mostrando que o problema ia além da conduta individual, residindo também na estrutura normativa que regia as contratações públicas.

O custo social da Operação Lava Jato: desemprego e paralisia

Para além dos balanços financeiros, a Operação Lava Jato deixou um rastro de profundos impactos sociais, sentidos principalmente pela classe trabalhadora e pela população afetada pela paralisação de obras essenciais. A desestruturação das grandes empreiteiras, peças-chave na engrenagem da operação de investigação, resultou em demissões em massa, agravando o quadro de desemprego no país. Um estudo do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE), amplamente divulgado pela Agência Brasil e outras fontes, estimou a perda de 4,4 milhões de empregos no Brasil entre 2014 e 2017 como consequência direta e indireta da operação, sendo que uma parcela significativa dessas perdas ocorreu no setor de construção civil. A pesquisa de Ferreira (2016) já evidenciava a queda no número de trabalhadores formais no setor logo nos primeiros anos da Lava Jato, um reflexo direto da crise de confiança e da redução drástica de investimentos.

A fraudes não apenas desviaram recursos públicos, mas também comprometeram a execução de projetos de infraestrutura cruciais para o desenvolvimento social e econômico. Obras paralisadas ou canceladas, desde estradas e ferrovias até hospitais e escolas, deixaram um legado de serviços não entregues à população e de recursos desperdiçados. A interrupção abrupta de grandes projetos, muitos deles manchados pela corrupção, gerou um efeito cascata, afetando pequenas e médias empresas fornecedoras, prestadores de serviço e comunidades locais que dependiam economicamente dessas obras. A crise social se manifestou não apenas na perda de renda e emprego, mas também na deterioração da infraestrutura e na frustração das expectativas de melhoria na qualidade de vida, um custo social elevado derivado diretamente das práticas de corrupção e da forma como a operação de combate a ela foi conduzida.

Sobrevivência e reestruturação: o caminho das empreiteiras pós-Operação Lava Jato

Dez anos após o início da Lava Jato, as grandes empreiteiras brasileiras envolvidas nos esquemas de corrupção trilham caminhos distintos, mas marcados por profundas reestruturações, processos de recuperação judicial e uma busca por reerguer sua reputação e seus negócios. A Odebrecht, talvez o nome mais emblemático da operação, passou por uma drástica transformação. Após entrar com o maior pedido de recuperação judicial da história do Brasil em 2019, com dívidas que beiravam os R$ 100 bilhões, o grupo mudou seu nome para Novonor, numa tentativa de se desvincular do passado manchado pelo escândalo que se envolveu. Recentemente, em maio de 2025, seu braço de engenharia e construção, que havia sido renomeado para OEC, anunciou a retomada do nome Odebrecht Engenharia & Construção, sinalizando uma nova fase após a homologação de seu plano de recuperação e uma substancial redução de sua dívida bilionária, conforme noticiado pelo jornal O Estado de S. Paulo. A empresa busca retomar contratos, inclusive públicos, e destaca projetos atuais no Brasil e no exterior.

Outras gigantes da construção também enfrentaram trajetórias turbulentas. Empresas como OAS, Andrade Gutierrez, Camargo Corrêa e Queiroz Galvão igualmente recorreram a processos de recuperação judicial ou extrajudicial, venderam ativos importantes e buscaram renegociar seus acordos de leniência firmados no âmbito do combate à corrupção. A Folha de S.Paulo reportou em março de 2024 que essas empresas, com faturamentos drasticamente reduzidos, buscavam alívio junto à Controladoria-Geral da União (CGU) e tentavam retornar ao mercado de obras públicas.

A desestruturação causada pela Lava Jato abriu espaço para a entrada de empresas estrangeiras e médias construtoras nacionais em segmentos antes dominados pelas grandes empreiteiras, reconfigurando o cenário da construção pesada no país. A sobrevivência dessas companhias depende agora de sua capacidade de reconquistar a confiança do mercado e do poder público, demonstrando não apenas solidez financeira, mas também um compromisso efetivo com práticas de integridade, distanciando-se do legado da Operação Lava Jato.

O dilema da Lava Jato: avanços contra a corrupção versus custos econômicos e sociais

A avaliação do legado da Operação Lava Jato, uma década após seu início, revela um complexo dilema para o Brasil. Por um lado, a operação desvendou esquemas fraudulentos profundamente enraizados nas relações entre o setor público e grandes empresas, levando à condenação de empresários e políticos poderosos, algo inédito na história do país. A recuperação de bilhões de reais desviados e a implementação de mecanismos de compliance em diversas companhias podem ser vistos como avanços institucionais no combate à práticas licitatórias ilícitas. A percepção de que a impunidade não era mais absoluta gerou, em parte da sociedade, uma esperança de mudança e maior integridade na gestão pública e privada. A própria renegociação de acordos e a busca por novas práticas pelas empresas sobreviventes indicam uma transformação, ainda que impulsionada pela necessidade.

Por outro lado, os custos econômicos e sociais associados à forma como a operação foi conduzida são inegáveis e severos. O estudo do DIEESE, que apontou a perda de 4,4 milhões de empregos e uma retração de 3,6% no PIB, quantifica o impacto devastador na economia. A paralisação de investimentos, a falência de empresas e a desestruturação de cadeias produtivas, especialmente na construção civil, representam um prejuízo de longo prazo para o desenvolvimento nacional. Críticas sobre possíveis excessos, partidarização e violações de garantias legais durante as investigações também mancharam a reputação da operação, levantando questionamentos sobre a sustentabilidade de seus métodos e a legitimidade de alguns de seus resultados. O combate à corrupção é essencial, mas a estratégia adotada na Lava Jato gerou efeitos colaterais que penalizaram fortemente a economia e a sociedade, criando um debate ainda em aberto sobre se os fins justificaram os meios e se os benefícios superaram os enormes prejuízos gerados pela forma como a luta contra a corrupção foi travada.

Conclusão: A encruzilhada da corrupção e o futuro incerto

Dez anos depois, a Operação Lava Jato deixa um legado ambíguo e complexo para o Brasil. Se por um lado expôs as entranhas de práticas corruptas sistêmicas e promoveu avanços no arcabouço legal e nas práticas de integridade corporativa, por outro, gerou uma crise econômica e social de vastas proporções, cujos efeitos ainda são sentidos, especialmente no setor de construção civil pesada. As empresas que sobreviveram ao furacão buscam se reerguer em um cenário transformado, mais competitivo e, espera-se, menos tolerante com práticas ilícitas. No entanto, a recuperação plena do setor ainda depende de investimentos consistentes em infraestrutura e da restauração da confiança entre os agentes públicos e privados.

A pergunta sobre se há o que comemorar permanece sem resposta fácil. A luta contra a corrupção é um imperativo para a democracia e o desenvolvimento sustentável, mas a experiência da Lava Jato levanta questionamentos cruciais sobre os métodos e as consequências não intencionais de operações dessa magnitude. O desafio para o futuro é encontrar um equilíbrio: combater a corrupção de forma eficaz e implacável, sem, contudo, destruir setores estratégicos da economia ou aprofundar as desigualdades sociais. A reconstrução do setor de construção e a retomada do crescimento passam, necessariamente, por aprender as lições dessa década turbulenta, fortalecendo as instituições e garantindo que o combate à corrupção caminhe lado a lado com a responsabilidade econômica e social.

Referências

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